Dia desses, vinha eu do centro para o subúrbio, pela avenida Santo Amaro, quando na altura da avenida Juscelino Kubitschek entrou no ônibus um ébrio maltrapilho. Não tinha ele mais que quarenta janeiros e se sentou há uns dois bancos a minha frente. Trazia uma sacola com os seus pertences donde tirou um radinho de pilha e o ligou. Os passageiros fitaram-no com olhar de censura, porque dentro do coletivo não é permitido o uso de aparelhos sonoros, a exceção dos walkmans; contudo, ficaram apenas no olhar, sem lhe dizerem nada. Era o momento da “Hora do Brasil” e uma reportagem dizia: “O governo federal está implantando um novo sistema...”
Nisso ele interrompeu, com um ar de deboche:
– Plantando, plantam tudo e não nasce nada?!
Daí a pouco: “... o partido tem maioria no Senado, e poderá reagir...”
Então ele olhou em derredor e disse:
– Com certeza não é o meu partido.
Outra reportagem dizia: “... o governo recebeu hoje à tarde novo abaixo assinado das associações das mulheres que contraíram gravidez, vítimas das famosas pílulas de farinha. O caso ainda tramita no...”
– Hei, pílula de que mesmo? Perguntou ele para alguém a sua frente.
– De farinha, respondeu o estranho.
Ficou ele pensativo, e depois perguntou ao mesmo:
– Já chegou nesse ponto é?
– Sim, já é o meu ponto.
E o seu interlocutor apeou sem entender a pergunta, com a qual, ao que parece, ele queria saber se já tinha chegado a ponto de se vender farinha como remédio. E a reportagem continuava, agora com um deputado se defendendo de alguma acusação: “... tenho um passado limpo, a minha vida é de completa transparência e os que me caluniam não tardarão a engolirem essas inverdades imundas...” Ele então esticou os dois braços a frente, observou-os bem, depois deu uma conferida na camisa, na calça, e foi descendo até os pés descalços, parecia se dar conta de que era uma imunda verdade; contudo, não disse nada. Em seguida desligou o rádio, guardou-o na sacola e ficou a olhar os transeuntes. Depois passou a admirar os outdoors, lendo em alta voz os anúncios. Daí a pouco veio um que dizia assim: “Nossa Guerra é Contra a Fome”.
– Opa; exclamou! Onde eu me alisto? Nessa serei general.
Algumas pessoas ensaiaram uma risada, outras riram em silêncio, mas quase sem poderem se conter. Eu prestava tanta atenção nele que não tive tempo para fazer nem uma coisa nem outra. Mais adiante, num semáforo, estava ao nosso lado um importado com um bacana acompanhado por uma bela mulher. Ele não perdeu tempo:
– Carrão, hein? Até parece que Deus fez vocês dois só para torná-la ainda mais bonita. Mas ela merece, as mulheres merecem tudo de bom, são as mães do mundo, não é pessoal?
– Sim. Responderam dois ou três dos que estavam próximos.
Alguns mais tímidos, como eu, apenas acenaram com a cabeça. Logo o sinal abriu e o bacana arrancou bruscamente, desaparecendo na frente do ônibus. Ele então o advertiu:
– Mas vai devagar, companheiro, porque alguém te espera em algum lugar, e vivo. Não é pessoal?
– Sim, e nisso o coro aumentou.
Dois pontos depois, cambaleante, ele se levantou e disse a todos:
– Fiquem com Deus e tenham uma boa viagem, pessoal.
Então, todos, sem exceção, até o motorista e o cobrador responderam:
– Obrigado.
Eu pude vê-lo indo pela plataforma, trôpego, para um destino que talvez ele nem sabia qual era, porque parecia seguir o vento. Quando o ônibus deixou o ponto eu passei a prestar atenção na fisionomia de cada um dos passageiros e, surpreendentemente, pareceu-me que todos nós tínhamos algo em comum com aquele mendigo. Afinal de contas, se na embriaguez ou na sobriedade, se na miséria ou na abastança, se mais infelizes ou felizes que ele, quem de nós sabia do nosso destino?
Edmar Eleutério – Parelheiros/SP – 07/4/2003 – 17:10 hs